Hoje olhei

Hoje olhei para o meu pai.
Normalmente costuma estar na sala comigo e o convívio resume-se aos comentários soltos no ar. Do que passa na tv. De como tem corrido o trabalho. De como têm corrido os exames e consultas.
Mas hoje olhei-o.
Estava a mastigar uma garfada do meu jantar e os meus olhos encontraram-no ao meu lado. Não sei explicar porquê, mas o que vi não foi o mesmo que costuma acontecer quando os meus olhos o encontram. Estava apenas a olhar para a televisão. Tinha comentado algo sobre os tempos de faculdade, de um episódio menos positivo pelo qual tinha passado. Penso que a lembrança dos tempos de dificuldades e batalha ajudaram ao filtro com que o olhei.

Olhei.
E vi um homem. Mais que isso, vi o meu pai. Não estava a ser o meu pai apenas naquele momento, ele é o meu pai desde que eu nasci.

Os nosso caminhos têm andado em paralelo mas não coincidentes. Chocamos muitas vezes nas nossas teimosias e filosofias distintas. Ele não usa a lógica e o bom senso da mesma forma que eu acho que deveria usar. Recusa-se a encarar isso. Já eu, num loop de constante chamadas de atenção, entrei num estado onde o relembro de coisas que nunca aconteceram. Não que eu esteja a inventar, apenas perco a noção do número de vezes que isso acontece, do fato de eu ter dito ou não aquilo, de o ter avisado ou não sobre aquela coisa.

O divórcio dos meus pais afastou-nos mais um pouco. Não que me tenha aproximado da minha mãe, porque na verdade acabei por ficar longe dos dois. A casa dele acabou por ser a casa da minha infância. E, talvez devido às lembranças do tempo eu que eu não estava partido em dois, sempre criei muita resistência à mudança naquela casa.

Por motivos profissionais acabei por voltar a viver naquela casa recentemente.
Foi num habitual jantar que aconteceu.

Olhei para ele desprovido de qualquer dos momentos dos últimos 20 anos, de qualquer memória boa ou má, de qualquer remorso ou atrito por ele.

Olhei como se eu fosse uma pequena criança a admirar o pai. Senti a sala e o tempo parar naquele instante.

Somos muito semelhantes. Fisicamente. A doença foi um ponto marcante na sua vida. Na vida de toda a família para ser franco. Naquilo que sempre neguei encarar como uma insensível positividade acabei por nunca ter encarado a sua existência como algo que podia acabar de um dia para o outro. O fim de toda a sua história, de todo o bem e mal que tinha causado, de todas as relações que ele tinha com todas as centenas de pessoas que o admiram e conhecem. Apenas o encarava como a origem das nossas discussões, a teimosia que encarava sempre que falava com ele.

Mas naquele momento apenas olhei e vi um homem. Como aquele em que um dia me irei tornar. Que passou por mais do que eu e saberei eu lá mais o que mais.

Naquele momento olhei e vi o mesmo pai que via quando tinha 2/3 anos. Sem maldade, sem atritos, sem filtros. Apenas um homem em busca do melhor para si e para mim. Um homem que lutou pelo que conseguiu e é sabedor do seu trabalho, artista da sua arte como diz o meu avô.

Vi pele, cabelo e um olhar em paz na direção da televisão enquanto falava de algo do trabalho. Admirei-o ali como há muito não o fazia. E vi o quanto errado eu tinha sido para com ele nos últimos anos.

Hoje olhei, e vi o meu pai.

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